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A BOATE KISS: UM ANO DEPOIS



Que os jovens mortos de Santa Maria tenham sido os derradeiros mártires feitos pela irresponsabilidade criminosa no Brasil (Veja, 6 fev. 2013).
No dia 27 de janeiro de 2014, fez, exatamente um ano que uma tragédia de enormes proporções se abateu sobre o Brasil, e, em especial,sobre o estado do Rio Grande do Sul. A tragédia, com repercussão internacional, abateu um total de 242 jovens que se encontravam na boate, quando um incêndio tomou conta do local. E, um ano depois, segundo os familiares das vítimas,  a impunidade faz com que a dor da perda dos entes queridos seja cada vez mais pungente. O poder público, responsável pela fiscalização da boate e pela autorização do seu funcionamento deve sair impune de toda a tragédia que nunca será esquecida pela população de Santa Maria, pelos familiares, amigos das vítimas e pela população brasileira.
Para os familiares das vítimas da Kiss, a luta agora é para não deixar que a responsabilidade pelo incêndio recaia somente sobre os proprietários da boate e os músicos da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no palco onde o fogo teve início. "Eu acredito que eles vão punir quatro pessoas, se muito, que vão ser os rapazes da banda e os donos da boate. E só. Aí tu perguntas: isso é justiça? Isso vai ser um 'cala a boca' pra nós. Como a gente vai dormir sossegado sabendo que o sistema continua da mesma forma? Eles continuam se protegendo", afirma Marília (Terra, 23 jan.2014).
E as manifestações do dia 27, em Santa Maria, não têm como objetivo homenagear os 242 jovens "assassinados", segundo Carina Corrêa, uma das líderes do movimento "SM Do Luto à luta" e   mãe de Thanise, de 18 anos, uma das vítimas do incêndio. "É para que isso não se repita. É o que queremos, discursou (CARNEIRO, 27 jan. 2014).
Segundo notícia publicada no jornal "A Gazeta" do dia 27, no Congresso, foram apresentadas 25 propostas - 20 na Câmara e cinco no Senado - prevendo normas mais rígidas e punições severas para empresários omissos com itens de segurança em seus estabelecimentos. Mas, pasmem: das 25 propostas, nenhuma foi aprovada até hoje!
Na época da tragédia, o efeito Boate Kiss se espalhou por todas as regiões do País, Estados e Municípios com ações visando garantir que tragédias, como a de Santa Maria, nunca mais ocorressem. Mas, da mesma forma que com relação aos projetos oriundos da esfera federal, são desconhecidas as propostas que, realmente, entraram em vigor. O que se sabe é que alguns outros fatos decorrentes da má fiscalização dos órgãos públicos e da ganância de empresários já ocorreram, mas, graças a Deus, nada que se assemelhe, de perto, à tragédia de Santa Maria.
No dia 21 de fevereiro de 2013, um incêndio de grandes proporções destruiu um restaurante e um pub em Recife (PE). Felizmente, não houve vítimas.
Em Brasília, no dia 19 de fevereiro, segundo o Terra (27 fev. 2013), o prédio que abriga os ministérios dos Transportes e das Comunicações foi evacuado após a explosão de uma subestação da Companhia Energética de Brasília (CEB) provocar um incêndio no edifício. De acordo com servidores, o alarme de incêndio não disparou.
Em 2012, um incêndio, também causado pela explosão de um gerador, atingiu o Ministério dos Esportes e provocou a morte de um funcionário. Ambos os ministérios não possuíam alvará de funcionamento. Isto é: prédios do governo federal funcionando em situação irregular.
Aliás, segundo Souza (14 fev. 2013), o Congresso e pelo menos 5 prédios que abrigam ministérios têm problemas como falta de alvará, existindo, no Congresso, até mesmo uma porta de emergência que está sempre fechada. Ainda segundo a reportagem, em artigo publicado no GLOBO, no dia 4  de fevereiro de 2013, o ex-deputado Paulo Delgado (PT-MG) disse que:
O plenário da Câmara dos Deputados não tem habite-se e reúne mais deputados do que o Brasil precisa. Superlotado, o lúgubre vespeiro que é seu interior não resiste ao pânico. Se houver sincera agitação, por medo ou violência, metade dos deputados morre esmagada, para alegria de quem não vê seriedade na política. Não há janelas, saída de emergência, tudo é carpete, pelas portas não passam duas pessoas às pressas.
Mais recentemente, no dia 1º de dezembro de 2013, o jornal "A Gazeta" publicou : "Incêndio em Auditório: alvará está vencido há vinte anos".  E a notícia:
O auditório Simón Bolívar, que integra o complexo do Memorial da América Latina e pegou fogo na sexta-feira, não renovava o alvará de funcionamento havia 20 anos. A informação é da Secretaria Municipal de Licenciamento da Prefeitura de São Paulo.
E mais:
Segundo a nota da Secretaria de Licenciamento,foi realizada uma vistoria referente a um evento temporário que ocorreu em um dos auditórios do local. Na vistoria, foram constatadas irregularidades relacionadas, por exemplo, à "instalação elétrica e acúmulo de materiais inservíveis".
No combate ao incêndio, 25 soldados foram atendidos com intoxicação e alguns tiveram queimaduras internas. Quatro deles precisaram ser internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI).
No Estado do Espírito Santo, segundo o jornal "A Gazeta" (27 jan. 2014), as vistorias em casas de Show cresceram 70% , após o incêndio da Boate Kiss. Ao todo, foram 1.009 vistorias e 104 irregularidades detectadas. No total, incluindo escolas, hospitais, condomínios e boates, foram 47.259 fiscalizações. E novas normas de segurança foram aprovadas em outubro!  
No entanto, alguns casos ainda ocorreram depois da tragédia:
Em 21 de fevereiro de 2013, segundo notícia divulgada pelo G1 Espírito Santo, a Escola Municipal Maria Angélica Bossato, que fica no bairro Portinho, em Piúma, Sul do Espírito Santo, teve as aulas suspensas após incêndio. Desta vez, foi o padrão de energia da Escola que pegou fogo e uma parede da unidade foi atingida. No momento do incêndio, 35 alunos da educação infantil estavam dentro do colégio. Nada foi informado sobre a presença de extintores de incêndio na escola.  
Em 22 de fevereiro deste ano, o jornal Folha Vitória noticiou: “Incêndio causa pânico entre alunos e professores de escola pública na Serra”. Desta vez, foram três salas de aula de uma escola que foram atingidas por um incêndio, no bairro Jardim Carapina, no município da Serra. Segundo a reportagem, houve pânico, correria e dificuldades em apagar o fogo, porque, segundo o Corpo de Bombeiros, os extintores da escola estavam fora da validade. Felizmente, ninguém se feriu gravemente.
Em 05 de março de 2013, o mesmo jornal noticiou: “Sem condições básicas para estudar, alunos protestam e fecham avenida em VV”. E o representante dos alunos informou a justificativa do protesto:
A gente já está a três anos em instalações provisórias. Estamos passando por momentos muito difíceis. Estamos sem água, sem banheiro, sem ventiladores. Não temos nenhum tipo de segurança, não temos extintores de incêndio, as salas estão com rachaduras. É um lugar onde não há possibilidade de estudar, disse o estudante Daniel Máximo. (os grifos são nossos).
E, falando em escolas, a reportagem supracitada do jornal "A Gazeta"  traz um subtítulo: "Falhas de segurança em escolas". Nela, é informado que as vistorias realizadas no ano de 2013 incluíram escolas da rede municipal da Serra e de Vitória. E acrescenta que, "na Capital, todas as unidades apresentaram irregularidades".  Ainda segundo a reportagem "a ideia do corpo de bombeiros é expandir essa fiscalização por outros municípios do Estado (...)". Interessante! Nada foi dito sobre fiscalização nas escolas estaduais e privadas... Nas privadas, há a justificativa que, para a aprovação do seu funcionamento e, mais tarde, para o seu reconhecimento, elas devem apresentar documentos que comprovem a segurança das pessoas que ocupam os seus espaços. Mas, no caso das escolas estaduais, esses documentos não são exigidos. E, como já afirmamos em outro artigo que tratava sobre o assunto (JESUS, 27 mar. 2013), segundo informação obtida de uma inspetora da Secretaria Estadual de Educação, no ano de 2008, quando éramos Conselheira do Conselho Estadual de Educação, nenhuma escola da rede estadual de ensino tinha o habite-se e nem tampouco a Certidão de Vistoria do Corpo de Bombeiros. É necessário, portanto, que as escolas estaduais, também, sejam alvo da fiscalização. E, com certeza, as surpresas (ou não!) serão muitas!
E mais notícias sobre a falta de segurança em locais públicos ou que recebem um grande número de pessoas: o jornal "A Gazeta" do dia 29 de janeiro deste ano trouxe a notícia de que "Risco em prédio do Incra faz servidor parar." E a notícia:
Servidores da Superintendência Estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão federal com sede em São Torquato, Vila Velha, paralisaram suas atividades, ontem, por causa das condições do prédio que apresenta infiltrações por todos os lados, fios expostos e um parecer da Defesa Civil que indica risco de desabamento.
Três prédios da sede do Incra foram condenados pela Defesa Civil, e um deles interditado devido ao desabamento do teto de gesso de um banheiro.
(...)
Além dos problemas estruturais, também há risco de descargas elétricas e até incêndio, devido ao superaquecimento de aparelhos elétricos. A situação causa medo nos trabalhadores.
E mais uma notícia. Esta publicada no mesmo jornal, no dia 1º de fevereiro: "Escolas de samba: barracões têm irregularidades".  E a informação é de que todas as dez escolas de samba do Grupo Especial do Carnaval de Vitória apresentaram irregularidades em seus barracões, tais como falta de extintores, de saídas de emergência e ausência de alvará de funcionamento, segundo uma vistoria do Corpo de Bombeiros.
E, no mês em que a tragédia da Boate Kiss faz parte de reportagens em vários jornais e revistas, o jornal "A Gazeta" do dia 18 de janeiro publicou notícia sob o título: "Corpo de Bombeiros interdita, e justiça libera boate irregular". Na reportagem, é informado que  uma vistoria do corpo de bombeiros apontou superlotação na boate Multiplace Mais, localizada em Meaípe, Gurarapari , multando e interditando o estabelecimento que teve o seu alvará de funcionamento cassado. A vistoria, feita durante um show de uma banda nacional, constatou que havia 2.109 pessoas além do limite de público, que  é de 5.461. Além disso, foi constatado que uma das saídas de emergência estava fechada com correntes e cadeados. Na saída principal, havia barreiras  e bloqueios que poderiam impedir a saídas das pessoas em caso de emergência. Segundo o comandante-geral do Corpo de Bombeiros, coronel Edmilton Aguiar,

ao receber o relato da vistoria, ficou clara a necessidade de se adotar uma providência urgente. Foi levado em consideração o fato de que a boate era reincidente nas mesmas infrações, mesmo já tendo sido notificada e multada em outros eventos, no ano passado.(os grifos são nossos) ( DEVENS, 18 jan. 2014).
Ainda segundo o coronel, para que um novo alvará fosse emitido, seria necessário um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), que deveria ser firmado entre o Ministério Público, a boate e o Corpo de Bombeiros.
É importante lembrar que a boate Multiplace Mais é um dos maiores complexos de entretenimento do Estado do Espírito Santo, recebendo, a cada evento, um número considerável de pessoas de todas as idades, principalmente pela sua localização privilegiada no balneário de Guarapari.
Segundo a liminar concedida pelo juiz Marcelo Mattar Marinho, da Vara da Fazenda Pública de Guarapari, a boate foi autuada em 12 de janeiro e teria um prazo de quinze dias para o cumprimento das exigências e apresentação de recurso. E ainda:
Para o juiz, o Corpo de Bombeiros deixou de respeitar o prazo concedido pelo próprio órgão, o que poderia trazer danos patrimoniais irreparáveis aos proprietários, já que a boate já tem eventos programados e ingressos vendidos( Devens, 18 jan. 2014).
Essa decisão significaria que a Boate teria até o dia 27 de janeiro para o cumprimento das exigências do Corpo de Bombeiros, continuando, até lá, em pleno funcionamento, com a realização de shows nos dias 17, 18, 24 e 25, expondo ao perigo a vida de milhares de pessoas.
No dia 31 de janeiro, mais uma vez o jornal "A Gazeta" aborda o assunto, informando que o Ministério Público pediu a interdição da boate Mais. A ação tentou sensibilizar o juiz sobre os perigos do funcionamento da Boate:
O que se pretende com esta ação é impedir que após ocorrência de um sinistro grave (incêndio, pisoteamento, briga generalizada, tumultos diversos, correrias), comece a discussão sobre quem seria responsável pelo evento: se a requerida [Multiplace Mais], que permite excesso de pessoas dentro de seu estabelecimento e não cumpre as normas de segurança, se o município, que não cassou alvará de funcionamento diante das graves denúncias feitas pelo Corpo de Bombeiros, ou se agora o Poder Judiciário, que acionado não determinou providências enérgicas para solucionar o grave quadro que se pode avizinhar (Século Diário, 30 jan. 2014).
Mas, a ação não surtiu o efeito desejado:
 Desta vez, foi a vez do juiz da Vara dos Feitos da Fazenda de Guarapari, Eliezer Mattos Scherrer Junior, adiar o exame da ação do MPES, que pedia a interdição imediata da boate. Na decisão desta quinta-feira (30), o magistrado deu prazo de 72 horas para o município de Guarapari se manifestar sobre o processo (Século Diário, 30 jan. 2014).
Assim, ficou garantida a realização dos Shows dos dias 31 de janeiro e 1º de fevereiro e o encerramento do Festival de Verão da Boate, com mais vidas colocadas em risco!  É ! 242 mortes não serviram de lição!!!!

BIBLIOGRAFIA
CARNEIRO, Luiza. Vigília e protesto lembram as 242 vítimas da Kiss, um ano depois. G1, 27 jan. 2014. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2013.
DEVENS, Natália. Corpo de Bombeiros interdita, e Justiça libera boate irregular. A Gazeta, Vitória, p.8, 18 jan. 2014.
242 MORTES não serviram de lição. Século Diário, Vitória, 30 jan. 2014. Disponível em: .Acesso em: 4 fev. 2014.
ESCOLAS  de samba: barracões têm irregularidades. A Gazeta, Vitória, p. 9, 1 fev. 2014.
JESUS, Marlucia Pontes Gomes de. A boate Kiss e as escolas públicas brasileiras. Damarlu Educação, 27 mar. 2013. Disponível em: .  Acesso em: 4 fev. 2014.
KISS, 1 ano depois: famílias se revoltam com 'jogo de empurra' de políticos. Terra, 23 jan. 2014. Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2014.
MEMORIAL: alvará está vencido há vinte anos. A Gazeta, Vitória, p. 16, 1 dez. 2013.
PROMOTORIA  pede interdição da boate Mais. A Gazeta, Vitória, p. 9, 31 jan. 2014.
RISCO em prédio do Incra faz servidor parar. A Gazeta, Vitória, p. 10, 29 jan. 2014.
SÁ, Carla. Casas de show: novas regras e fiscalização. A Gazeta, Vitória, p.3, 27 jan. 2014.